20 de março de 2019
Brumadinho e Flamengo, ensinamentos da tragédia
Falar dos aspectos práticos de tragédias como as que acometeram o país esse ano, em Brumadinho/MG e no Rio de Janeiro/RJ, não é tarefa fácil, pois é natural que o subjetivismo inerente ao tema se sobreponha a qualquer outra discussão, por mais relevante que seja.
Cabe, contudo, a reflexão a respeito das causas de tamanhas atrocidades, bem como sobre formas de prevenir novas ocorrências como estas.
O Grupo Alliance, como uma associação composta por empresas que atuam em diversos segmentos, acredita na importância de debater os acidentes, na expectativa de alertar sobre possíveis formas de prevenção. Para isso, conversamos com alguns especialistas com o objetivo de mostrar diferentes opiniões sob o ponto de vista jurídico:
Direito Trabalhista
Os acidentes de Brumadinho/MG e do Rio de Janeiro/RJ têm elementos em comum, sobretudo do ponto de vista trabalhista, já que, em ambos os casos, os funcionários das empresas envolvidas foram afetados. Na avaliação do advogado trabalhista Mourival Ribeiro, sócio da Boaventura Ribeiro Advogados, os casos podem ser classificados como acidentes de trabalho, visto que é obrigação do empregador garantir que a prestação de serviços ocorra em ambiente seguro e saudável, sob pena de ser responsabilizado caso haja culpa comprovada.
Para Ribeiro, os profissionais contratados para a elaboração de laudos técnicos, direta e indiretamente deveriam avaliar as condições de segurança do local. “Apesar disso, não é difícil imaginar a pressão que pode ser imposta pelo empregador a estes profissionais para subscrever documentos atestando a conformidade do local. Obviamente que as famílias destes trabalhadores vitimados pela tragédia terão direito a indenizações, como forma de minimizar a dor da perda, mas seguramente prefeririam ter o ente querido ao seu lado” afirma.
Em relação aos direitos das famílias das vítimas diante de situações como essa, Ribeiro explica que os herdeiros podem reivindicar dois tipos de indenização contra os responsáveis pelo acidente: por danos materiais e/ou por danos morais. No primeiro caso, a família tem o direito de ser ressarcida pelas despesas e normalmente o percentual fixado varia conforme a remuneração do trabalhador afetado, devendo ser paga em uma única parcela, além dos benefícios previdenciários aos dependentes. Já a indenização por dano moral, também pode ser solicitada por familiares próximos à vítima e fica limitada a 50 vezes o salário do trabalhador falecido.
Processos e riscos às empresas
“Infelizmente o poderio econômico da Vale, gigante mundial da mineração e também do CR Flamengo, parece dar as estas instituições uma certa sensação de impunidade, já que a questão financeira não deve ser problema para as mesmas, entendo que o principal risco e prejuízo ocorre na imagem e marca da instituição”, analisa Ribeiro.
Segundo o advogado, as instituições devem se conscientizar de sua responsabilidade social, tratando as questões que envolvam a segurança dos trabalhadores com maior seriedade, além das práticas comumente adotadas. A contratação de auditores independentes, envolvendo entidades e organizações não governamentais para acompanhar e auditar os laudos elaborados seria, assim, um primeiro passo para a prevenção.
Direito Penal
Analisando os fatos ocorridos em Brumadinho/MG e no Rio de Janeiro/RJ do ponto de vista criminal, especialistas afirmam que é preciso avaliar a existência de dolo dos envolvidos em ambos os acidentes, ou seja, a existência de intenção direta ou eventual dos responsáveis de praticar os crimes, além da culpa na conduta das pessoas ligadas às causas das ocorrências.
O Código Penal brasileiro prevê duas modalidades de delitos dolosos, admitindo dolo direto ou eventual. O dolo direto caracteriza-se pala vontade plena do agente de produzir o resultado criminoso, enquanto o eventual pressupõe a previsibilidade do fato e a assunção do risco de produzi-lo, ainda que sem a consciente intenção do autor do delito. Assim, é possível que os envolvidos nas tragédias respondam pela segunda modalidade, já que a acusação provavelmente entenderá que os acidentes eram previsíveis e que a omissão dos responsáveis em relação às medidas preventivas consubstanciam indício de que havia consciência sobre os riscos dos fatos acontecerem. Nos casos de Brumadinho/MG e Rio de Janeiro/RJ, todos os elementos divulgados pela mídia levam a crer que os responsáveis negligenciaram a manutenção dos mecanismos de prevenção de acidentes, sem acreditar, contudo, que as tragédias pudessem de fato acontecer, sobretudo em proporções tão nefastas.
A responsabilidade da empresa e dos sócios e administradores
As pessoas físicas responsáveis pelos fatos que causaram os acidentes podem responder por sua omissão na esfera criminal. Já as pessoas jurídicas responderão criminalmente pelos danos ambientais causados pelos acidentes e estarão sujeitas à penalidades pecuniárias, podendo até sofrer a dissolução da sociedade, a depender da gravidade dos fatos, sem prejuízo do desgaste que tal situação pode gerar para a marca e reputação da empresa. A prevenção desses acontecimentos passa necessariamente pela implementação um programa de Compliance efetivo. Uma medida como essa evidenciaria a boa-fé dos sócios e administradores da empresa, desvelando intenção sincera de evitar práticas fraudulentas e/ou indesejadas no ambiente corporativo.
Um programa de Compliance efetivo é bem visto em qualquer tamanho e tipo de empresa, desde que engaje os sócios, administradores e colaboradores, e que facilite a rastreabilidade dos dados produzidos pelas operações internas. A implementação desse projeto deve observar as fases de prevenção (mapeamento de riscos, consolidação de código de ética e de políticas internas), detecção (ativação de canal de denúncia confiável e protocolo de gestão de terceiros) e resposta (investigação interna e revisão/melhoria constante dos mecanismos instalados) às ocorrências indesejáveis.
Medicina e Segurança do Trabalho
Duas importantes áreas dentro de uma empresa e que devem ser enxergadas com atenção são a medicina e a segurança do trabalho, mas que muitas vezes são confundidas, podendo comprometer não só as atividades exercidas pelos funcionários, mas o bem-estar dos trabalhadores. As duas áreas são não apenas complementares, mas também obrigatórias e previstas nas leis trabalhistas.
A medicina do trabalho é destinada a preservar a saúde física, mental e social do empregado, com o objetivo de prevenir, diagnosticar e tratar doenças que podem ser causadas pela atividade exercida em determinada função.
Já a segurança do trabalho, atua na prevenção de acidentes e riscos de integridade físicas que algumas atividades podem trazer aos funcionários. Além disso, a segurança do trabalho também tem por objetivo educar os trabalhadores para que as normas e medidas preventivas determinadas sejam respeitadas.
De acordo com a especialista em segurança e medicina do trabalho, Tatiana Moema, sócia da Moema Medicina do Trabalho, é preciso mudar a postura em relação a essas duas importantes áreas. “A medicina do trabalho é uma das poucas áreas da medicina que é totalmente desprestigiada. É preciso entender o nosso trabalho como sendo um importante instrumento de prevenção, já que muitos acidentes, doenças e até mortes podem ser evitadas através da intervenção desses profissionais”, afirma.
Para Tatiana, as duas tragédias levam à um debate mais intenso sobre a segurança do trabalho no país, já que os riscos e exposições não acontecem apenas em grandes empresas. “Grande parte das empresas multinacionais levam a medicina e segurança do trabalho a sério, mas a maioria das pequenas e médias empresas, muitas vezes com altos custos operacionais, ainda enxergam a área como um gasto e não como um investimento para prevenção” explica.
Como mudar esse cenário?
Para que situações de risco e tragédias como as ocorridas em Brumadinho/MG e no Rio de Janeiro/RJ se tornem cada vez mais raras, a especialista explica que o melhor caminho é a contratação de empresas especializadas em Medicina e Segurança do Trabalho.
“A atuação deve ser feita de forma séria, com a documentação em dia, aplicando as recomendações previstas nas normas técnicas. Além disso, é preciso investir e fiscalizar o uso correto de equipamentos de proteção, atuando constantemente com treinamentos e atuando na criação de programas de prevenção e conscientização dos colaboradores”.
Contratadores terceirizados
Do ponto de vista de contratadores terceirizados, Andrea Araujo, diretora da Saraf, empresa especializada em gestão de ativos que presta serviços para empresas similares às que respondem pelos acidentes, afirma que, por mais que a empresa cumpra todas as regras de segurança e forneça aos colaboradores equipamentos e treinamentos adequados, muitas vezes os laudos e políticas de segurança das empresas maiores se sobrepõem.
“Estamos no mercado há mais de 20 anos e vemos que muitas empresas priorizam seus lucros e optam por não priorizar da mesma forma os riscos de segurança de uma planta. Por outro lado, não podemos generalizar ao dizer que não existam empresas atualmente que levam a segurança de seus colaboradores como prioridade máxima”.
Para cumprir todas as premissas de segurança com os colaboradores da Saraf, a empresa conta com o departamento de medicina do trabalho que cuida da parte documental, além de oferecer treinamento de segurança aos técnicos e que são orientados quanto ao uso correto dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s).
Segundo Andrea, o ponto mais importante quando se trata da segurança dos colaboradores é não contar com a sorte, ou seja, imaginar que situações como essa nunca irão ocorrer. “Todos os riscos devem ser medidos e levados em consideração em suas últimas consequências, pois ignorar informações nesses casos pode acarretar em tragédias como essas, com perdas irreparáveis”, afirma.
Por fim, a diretora também explica que o colaborador não deve se sentir obrigado a realizar uma atividade que ele considere não cumprir todos os requisitos no qual ele foi treinado. “Além das capacitações das integrações feitas nas próprias fábricas, realizamos reuniões mensais onde reforçamos a importância do direito de recusa. Esse apoio da empresa é fundamental para que o profissional não sinta que está correndo risco de uma demissão caso se negue a realizar alguma atividade na qual não foi treinado ou que represente risco à sua segurança”.
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